"A pobreza é a pior forma de violência" (M. Gandhi)

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"A pobreza é a pior forma de violência" (M. Gandhi)

segunda-feira, 21 de março de 2011

Dia Mundial Contra a Discriminação Racial

A questão da discriminação racial prende-se com a questão do entendimento do Outro, daquele que é diferente de nós, não por deficiência, sexo ou nível sócio-economico, mas sim por Raça. E o que é isto da Raça? Cor? Cultura? Situação geográfica? Talvez tenha a ver com a questão da Origem. Ora se a Origem pode ser considerada factor de discriminação racial, de diferença, também o é, por certo, factor de união. Afinal, independentemente da nossa cor, sexo, cultura, do local onde nascemos, todos somos provenientes da mesma Origem, como diria Darwin, Homo Sapiens. Então, porquê as questões raciais, desse tipo de diferença, têm causado tanto sofrimento, exclusão, maus tratos, violência e até aproveitamento sócio político e social?
Será que a criança de apenas, digamos, dois anos, empurraria uma outra da mesma idade mas por exemplo, africana ou asiática, somente por essa mesma razão? Será que essa outra criança africana, sem qualquer tipo de antecedente traumático relativamente à sua “raça” voltaria a cara a uma criança dita caucasiana? Penso que não e por experiência até posso afirmar que não. Não nos esqueçamos que mesmo entre indivíduos da mesma “raça” existem questões de outro tipo de discriminação, agora não pela cor, mas pela cultura e origem dentro dessa mesma “cor”. Refiro-me como é evidente, pois é o meu campo de trabalho onde tenho mais experiência, aos africanos cujo sistema tribal os afasta, por nuances culturais diferentes, porque eu faço as coisas desta maneira e tu de outra, porque os meus rituais são estes e não são os teus, mas afinal que há assim de tão diferente entre os indivíduos? Para não falar no passado em que a certa altura se considerou que o africano não tinha alma e por isso não era um ser humano, o que para muitos, diria mesmo a maioria, serviu de desculpa para se implementar um sistema de comercio, o comercio de escravos, gostava de me voltar para o presente em que uma sociedade dita evoluída que fala de direitos humanos e que todos somos iguais, continua a discriminar, por vezes de forma velada, o Outro, o diferente na cor, na cultura, na origem. Porque não conhece? Sim! Mas também porque muitas vezes nem se dá ao trabalho de conhecer.
Apenas alguns exemplos:
As crianças soldados na Birmânia: comentei esta questão com alguém referindo ao tratamento a que são sujeitas quando não querem pegar numa arma e matar, tratamento esse que inclui espancamentos e cortes nas pernas. Ouvi o seguinte:” Mas afinal porque te preocupas, eles sempre estiveram habituados a essas coisas…” E eu pergunto-me será o sangue de uma criança birmanesa é diferente de uma portuguesa, francesa, espanhola ou inglesa?
Quando cheguei ao Quénia em Outubro de 2007 em missão de reconhecimento do terreno, confrontei-me com algo que julgava não existir, dado este país ser um destino turístico muito conhecido: em Kissi, uma região algo remota, foi acolhida em ambiente de festa pois pela primeira vez poderiam tocar num branco. Tanto a minha pela como a cor do meu cabelo, louro, foram muito apreciados e considerados belos, macios, o que deu uma enorme satisfação àquelas gentes.
As crianças que residem no Wanalea Children’s Home quando chegaram foi com desconfiança que para mim olharam, pois para eles branco é o Outro que subjuga, que nem sempre é bom, que ignora. Depois de estarem mais à vontade, vendo que eu não era “desses” a minha pele e o meu cabelo foram tocados, mexidos e remexidos e as gargalhadas e o contentamento foi enorme. Hoje, estou convicta que quando para mim olham nem “vêem” a cor da minha pele, mas simplesmente a “mummy” que por eles trabalha, que deles cuida.
Entre as 26 crianças que estão no Centro, existem 5 tribos diferentes: Luho, Kikuyo, Massai, Meru e Kissii. Todas elas sabem a que tribo pertencem, todas elas ainda não esqueceram o dialecto que falavam antes de aprender o swahili e o inglês, todas elas se orgulham das suas raízes. Mas também todas elas sabem que fazem parte de um país que se chama Quénia e que todas elas são quenianas. Se estas crianças podem ultrapassar barreiras raciais e tribais e ter abertura para o conhecimento do Outro, porque é que a nós ditos “civilizados” nos é tão difícil fazê-lo?
Deixo esta reflexão para o dia 21 de Março, pois é preciso ainda muita coisa mudar. A tolerância tem de ir mais longe e há que ter uma maior vontade de conhecer esse “Outro” que em ultima análise é o outro lado de nós mesmos.


Laura Vasconcellos

quinta-feira, 3 de março de 2011

A BIRMÂNIA CONTINUA ESMAGADA POR UMA DITADURA QUE PERSISTE IMPUNE…

«I would like the West to see us not as a country rather far away whose sufferings do not matter, but as fellow human beings in need of human rights and who could do so much for the world, if we were allowed.»
Daw Aung San Suu Kyi

Não é fácil falar de uma situação de grave e constante violação dos mais básicos direitos humanos quando esta diz respeito a um país que se encontra tão distante de nós. Submersos que estamos em imagens, notícias e relatos de tantos casos em que, levianamente, se esquecem esses mesmos direitos que todo o indivíduo possui, pelo menos teoricamente, como nos é possível olhar para mais um caso, para um país do sudeste asiático, tão longínquo como desconhecido, que se chamou Birmânia em outros tempos e que lhe viu imposta, sob uma ditadura, a designação de Myanmar?

Embora a libertação de Aung San Suu Kyi e das eleições fantoche de Novembro de 2010, nada mudou: são os mesmos, de militares passaram a civis, mas assistimos a um embuste e nada mais. Junta militar que força crianças, de apenas 10 e 11 anos, a ingressarem no exército, debaixo de maus tratos e ameaças, a pegar numa arma e a matar.

Conhecemos as violações de mulheres de minorias étnicas e os campos de trabalho onde a tortura é a lei, fruto da desumana política de desalojamento das aldeias, cujos camponeses, empobrecidos pelas condições miseráveis que são a realidade do país, se vêem obrigados a abandonar, tal como os seus campos de cultivo. Esses aldeões, famílias inteiras, são obrigados a completar em poucos dias uma longa marcha até um local desconhecido, sem condições, em geral próximo de um aquartelamento, onde são forçados a ficar e a trabalhar, a troco de nada, para os militares. Na última década, 3000 aldeias foram destruídas ou os seus habitantes realojados na região Este da Birmânia. Durante os sistemáticos ataques militares, as mulheres são violadas, as crianças forçadas a pegar em armas e os abastecimentos de arroz são queimados.
Nem após o ciclone Nargis que há cerca de dois anos abalou a Birmânia, estes militares se mostraram um pouco humano. Na zona mais afectada, o delta do Irrawady, milhares de pessoas ficaram sem nada. A ajuda humanitária foi impedida de entrar no país. Aviões do World Food Program sobrevoaram a zona lançando sacos de arroz: os militares recolheram-nos e, em vez de distribuir pela população, vendeu-os.
Fugindo da crueldade deste regime, deixando as suas aldeias e casas para trás, as populações temendo pelas suas vidas debandam pelas florestas, muitas vezes por terras inóspitas acabando por encontrar a Junta Militar à sua espera. Na Birmânia há cerca de um milhão e meio dos chamados desalojados internos, os IDP.
Este ciclo de terror parece não ter fim. O campo de refugiados situado na fronteira com a Tailândia em Mae Sot está a transbordar de gente sem nada, abandonadas pelo mundo. Aí, o tráfico de crianças impera.
A lista das violações dos direitos humanos na Birmânia é por demais extensa e variada. E perguntamo-nos: Como é possível que, em pleno século XXI, uma situação destas persista há tanto tempo?
A situação dos direitos humanos na Birmânia tem vindo a deteriorar-se cada vez mais. A situação é grave, nem havendo qualquer respeito pela crença religiosa do país, em que mais de 80% da população é budista. A Junta Militar e o seu líder, o general Than Shew, ignorando uma pacífica demonstração de descontentamento encabeçada precisamente por monges budistas, não hesitou em atirar sobre eles e sobre os civis que entretanto se lhes juntaram, e ordenou rusgas aos mosteiros que, em pouco tempo se encontraram vazios e sem cor, pois os monges de vestes cor de açafrão haviam desaparecido, encarcerados, torturados e muitos, pensa-se, queimados vivos em fornos crematórios nos arredores de Rangum.
O espírito dos estudantes da revolta de 8 de Agosto de 1988 ergueu-se, uma vez mais, agora com outra cor e outras vozes: o açafrão, as preces e os mantras budistas ouviam-se agora nas vozes da grande massa dos manifestantes.
Desta vez, nem a tradição religiosa teve poder para parar a corrupção, a ganância e a falta de qualquer tipo de respeito por parte destes generais. Eles, que usam, cada vez mais, o sistema de justiça como ferramenta para amordaçar a dissidência. Eles que, vendo-se apoiados pelas super potências vizinhas, continuam a desrespeitar os direitos humanos, ignorando os inúmeros apelos que vêm sendo feitos, desde há já algum tempo.
A Junta Militar continua impune e escarnece de toda a comunidade internacional. Todos nós sabemos o que se passou na Praça de Tiennanmen em 1989. Mas saberão que a 8 de Agosto de 1988, em Rangum, uma manifestação pacífica de estudantes foi massacrada pelos militares, provocando tantas mortes como as de Tiennanmen?
Há mais de dez anos que venho seguindo a situação na Birmânia, precisamente desde que por lá andei em 1997.
É com apreensão que vejo o destino desta gente que me é tão cara: mesmo sem os generais, não nos podemos esquecer que cerca de 48% da população da Birmânia é constituída por minorias étnicas, cujas principais e mais numerosas – karen, shan, karenni e outras – possuem os seus pequenos exércitos. Como irão estas estabelecer um entendimento, se um dia a Junta sair efectivamente do poder? Aung San Suu Kyy, poderá ser o elo de união desse povo, a razão da procura da estabilidade tão ansiada?
Aqui reside a minha preocupação: estas gentes estão cansadas de sofrer… Já o estavam quando com eles estive e deles ouvi, mesmo entre murmúrios, a voz do seu desespero
O belíssimo país dos mil stupas, de gente encantadora, que deu ao mundo uma mulher cuja coragem, abnegação, espírito de sacrifício e amor pelo seu povo, faz-nos acreditar que vale a pena lutar e continuar a acreditar que um dia todos nós seremos livres, porque, a meu ver, nenhum de nós é verdadeiramente livre enquanto pessoas como Aung San Suu Kyi permanecerem encarceradas.
Que Daw Suu permaneça em Liberdade e que essa Liberdade seja uma liberdade de facto
A esperança persiste no espírito daqueles que crêem na liberdade, na justiça e na democracia e mesmo aqui, em Portugal, tão longe da Birmânia, que haja um sentimento de solidariedade por aqueles que, sendo diferentes, sofrem no corpo e no espírito, como qualquer outro ser humano, a violação dos seus direitos mais básicos.