"A pobreza é a pior forma de violência" (M. Gandhi)

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"A pobreza é a pior forma de violência" (M. Gandhi)

domingo, 20 de novembro de 2011

Eu não me lembro...

É noite. Na região do Monte Quénia as noites são frias. O Cristiano é um menino de talvez uns 7 anos. Não se sabe ao certo. Não tem certidão  de nascimento. Pai? Mãe? É um menino de rua, como tantos outros, que vagueia invisível e que se desaparecer ninguém vai notar.
Nessa noite,  o Cristiano tem fome, está descalço, uns calções rotos e sujos e sem camisa.
Alguém teve pena dele.

O Cristiano chegou ao Centro Wanalea em 2008, no mês de Maio, numa noite não tão fria como as da região de Meru, no Monte Quénia. Estava um pouco assustado. Aquele ambiente era tão diferente do que estava acostumado. Havia outras crianças que sorriam e lhe davam as boas vindas. Uma senhora de olhar meigo e sorriso encantador deu-lhe um prato com feijão legumes estufados e chapati. O Cristiano arregalou os olhos ao ver o prato cheio: mal podia acreditar. Comida, sem ter de roubar, sem ter de fugir e que cheirava tão bem.

Nessa noite, grande parte do tempo a mesma senhora de olhar meigo e uma outra mais novinha tiraram-lhe das pernas, com jeitinho, as carraças que aí estavam há sabe-se lá quanto tempo. Doeu, mas aliviou!

O Cristiano nessa noite dormiu numa cama, com colchão  e até um lençol e cobertor.

Nos meses que se seguiram, o Cristiano frequentou  a escola no Centro com as outras crianças; fez amigos, comeu até se fartar e, a pouco e pouco, começou a rir, a brincar e foi esquecendo. Só algo ficou, como se estivesse gravado na sua memória, na sua carne: a fome! O Cristiano durante muito tempo, todas as noites levava nos bolsos do pijama e, pensava ele, às escondidas restos de comida, arroz, feijão, e dormia sossegado.

Ainda hoje, quando chega a hora da refeição e, por qualquer motivo, há um  atraso, o Cristiano fica cabisbaixo, não fala, não sorri, espera...

O Cristiano é um menino adorável: tem, agora, 10 anos, certidão de nascimento com data e tudo e já festejou este ano pela primeira vez o seu aniversário com uma bonita festa, os seus irmãos e irmãs do Centro e mais alguns amigos que convidou da escola particular que agora frequenta.

Tem uma mãe "mzungo", a mummy Laura, outra mãe-irmã também "mzungo" e a mesma senhora de olhar meigo que olha por ele com carinho e um senhor que está sempre no Centro, que toma conta de tudo com a mummy Laura e que sabe ralhar quando é preciso, que sabe castigar com amor.

O Cristiano é um menino normal, feliz, que dá gargalhadas encantadoras, que faz rir toda a gente, que é um estudante um pouco preguiçoso, mas com notas satisfatórias e que, por vezes, conta umas histórias que nem ele sabe bem donde lhe vêm, mas que provavelmente são memórias que agora fazem rir e com que goza,  mas que dantes magoava, e muito.

Hoje, pergunto-lhe: "Cristiano como era a tua vida antes de vires para o Centro?" Ele responde com um sorriso:"Não sei, não me lembro." E dá uma daquelas gargalhadas que tanto gosto  de ouvir e sai a correr com o seu modo desengonçado, descontraído.

Afinal, o Cristiano nasceu no dia em que chegou ao Wanalea Children´s Home!

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Onde está a minha mãe?

São 3 e meia da tarde. Mais um dia de escola que chegou ao fim. A Georgina tem 5 anos: entra no autocarro para ir para casa e percorre o caminho olhando pela janela, vendo o bulício de Ongata Rongai que tão bem conhece. Para ela, este é o seu mundo, ou melhor o Mundo.
O autocarro pára e a Georgina sai perto da sua casa onde , como de costume, a mãe a espera. O pai morreu não há muito tempo com Sida. Trabalhava no Ministério de Educação, não ganhava mal e a família vivia numa casa modesta, mas com algum conforto. A mãe estava desempregada há já algum tempo e a vida não corria da melhor maneira. Para a Georgina a morte do pai foi simplesmente uma ausência: ela não entendeu que era para sempre, por isso não ficou triste. Tinha a mãe! No entanto, nesse dia, quando chegou a casa a mãe não estava. A Georgina procurou-a na pequena casa onde habitavam, chamou-a, chamou-a e ficou sem resposta; apenas o silêncio. Sentou-se numa cadeira e colocou a pasta no sofá. Tinha fome, queria lanchar, mas a mãe não chegava e ela não sabia o que fazer. Passado algum tempo abriu a porta de casa, saiu para a rua e chamou pela mãe. Não houve resposta. Já assustada, foi percorrendo  a rua de terra batida chamando pela mãe até que uma senhora lhe pegou na mão  e disse: " Quem procuras menina? Onde está a tua mãe?" Georgina respondeu timidamente e com o queixo a tremer deixando correr uma lágrima pela face: "Não sei, não sei..." "Onde moras?", perguntou a senhora. A Georgina apontou com o dedinho para o fim da rua, no sentido da sua casa. "Vamos lá ver" disse a senhora sorrindo. A Georgina deu-lhe a mão e as duas foram pela rua abaixo até à casa da menina.
"Ah, já sei quem é a tua mãe" disse a senhora, "vi-a sair de manhã, mas não  a vi regressar. Vem comigo."
Assustada a menina foi com ela: tinha fome e não queria estar ali sozinha.
No dia seguinte a Georgina não foi à escola. Esperou em casa da senhora, foi inumeras vezes a casa, chamou pela mãe, mas esta não respondeu. Pelas 5 horas da tarde, a senhora resolveu levar a Georgina ao posto da polícia local e dar conta do desaparecimento da mãe da menina.

São 10 horas da manhã: a porta do Wanalea Children's Home abre-se e a Georgina entra pela mão do oficial do tribunal de menores. Esta será a sua nova casa: ali estão mais 26 crianças, todas com histórias ainda pior do que a Georgina: agora são uma família e é como família que a Georgina é recebida.

Duas semanas passaram e nem sinal da mãe da menina. O tribunal entrega a custódia da Georgina ao Wanalea Children's Home. Mesmo que a mãe apareça, o abandono da filha, que a lei severa do Quénia pune com 14 anos de prisão, é motivo suficiente para que a menina não volte a viver com a mãe. Talvez um parente: a investigação prossegue, mas a Georgina encontrou uma família e já ri novamente, voltou à escola, brinca e saltita alegremente com a que já é a sua melhor amiga, a Hilda que também tem 5 anos e é orfã.

É dia de ir ao médico fazer os exames exigidos no Wanalea Children´s Home. A Georgina é seropositiva, como a Irene que também faz parte desta família. Será tratada e com a boa alimentação e cuidados, tal como a Irene, superará a fragilidade que a doença lhe provoca.

A Georgina apresenta um estrabismo no olho direito, assim é levada ao oftalmologista. Os óculos já estão encomendados e chegam para a semana. O médico refere que com 5 anos, esta forma de estrabismo que poderia levar a menina à cegueira, pode ser tratada com sucesso. A Georgina não perderá a visão e o estrabismo desaparecerá em 2 anos.

Hoje, passado um mês, a Georgina está feliz. A mãe parece ter sido vista nas redondezas, não se sabe ao certo, mas não reclamou a filha: dizem que foi depressão pela morte do marido; dizem que fugiu com outro homem; dizem que sendo a filha seropositiva não queria cuidar dela, não se sabe o que leva uma mãe a abandonar uma menina como a Georgina. Talvez temesse não ter como  a alimentar, quem sabe...

Hoje a Georgina pegou-me na mão, olhou para mim, sorriu, e disse: "mummy Laura I love you!"