"A pobreza é a pior forma de violência" (M. Gandhi)

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"A pobreza é a pior forma de violência" (M. Gandhi)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

E de repente eles vieram...

Pouco depois de terem saído os resultados das eleições, em finais de 2007, no Quénia, estalou uma onda de violência pós eleitoral que acendeu o ódio entre as várias tribos, especialmente contra o povo Kikuyo.

Anne tinha 10 anos. Vivia num bairro de lata, em Nakuru, zona conhecida pelo magnífico lago que tem o mesmo nome e célebre pela enorme mancha cor-de-rosa das centenas de flamingos que vivem nas suas margens.

Anne vivia com a mãe e dois irmãos. O pai tinha abandonado  a família que lutava árduamente para sobreviver. Não ia à escola; o dinheiro mal chegava para comer uma refeição por dia: arroz, feijão, ugali e pouco mais. Eram 8 da manhã, num dia que se adivinhava de grande calor, nesse mês de Dezembro de 2007.O sol aquecia já bastante e Anne tinha sido mandada buscar água ao fundo da rua limitada por casebres feitos de lama e chapa onde uma senhora, já com alguma idade, vendia água que saía de uma torneira ligada a um furo pertencente a sabe-se lá quem, que cobrava à tal senhora e esta aos moradores do bairro de lata. A água é um bom negócio nos bairros de lata.
Anne sabia a importância da sua tarefa: era preciso ferver água para beber e para fazer chá. O açucar era caro e, por vezes, não havia dinheiro para comprar; mas o chá, esse não faltava nunca.

Chegou a casa, acendeu o fogareiro a carvão e pôs um pouco de água a ferver: "Mãe, já trouxe a água".
A mãe de Anne teria uns 37 anos, era portadora do vírus da SIDA. Todos dormiam no chão, enrolados em cobertores rotos e sujos, mas estavam juntos e esse calorzinho trazia-lhe, quando fechava os olhos, uma sensação de quase segurança.

Anne sabia que havia perseguições ao povo Kikuyo depois das eleições que se diziam de resultados forjados: Kibaki era Kikuyo ; Kibaki não queria deixar o cargo de presidente.

Nessa manhã, perto do meio dia, Anne tinha novamente saído para tentar arranjar alguns vegetais, sukuma e tomate, para cozinharem com o ugali.

De repente eles vieram.... eram muitos, na sua larga maioria homens e jovens também: traziam machetes nas mãos e gritavam cheios de raiva. Pegavam fogo aos casebres por onde passavam fazendo sair os que aí se encontravam: velhos, mulheres crianças...e as machetes desferiam golpes mortais, as roupas das mulheres rasgadas e ali mesmo, no meio da confusão e da gritaria, eram violadas e espancadas.

Anne deixou cair o saco que trazia na mão e ficou parada, sem saber o que fazer....queria correr para a sua casa, saber da sua mãe, dos seus irmãos que aí  a esperavam, pois do sítio onde esta se encontrava elevavam-se enormes colunas de fumo e labaredas.

Anne olhou para tudo aquilo  e chorou. Mas o instinto fê-la correr e fugir, esconder-se tentar escapar a toda aquela violência. As lágrimas corriam-lhe pelas faces, os pés descalços feridos pelas pedras que, com o medo a dar-lhe força, nem via que pisava.

Escondeu-se por detrás da parede de uma casa de lama vazia, cujo telhado de colmo já havia ardido. Sentou-se, encolheu-se o mais que pôde, fez-se pequenina. Não queria ouvir mais gritos: tapou os ouvidos com as mãos e chorou, chorou muito....

Era já escuro quando se levantou e decidiu, timidamente e a medo, ver o que se havia passado. Não entendia.Porquê?  Foi andando em direção à sua casa: a rua era um amontoado de escombros: as casas tinham ardido, alguns corpos jaziam no chão sem vida; havia sangue também.
Anne andava aos tropeções e de novo chorava. Já não sabia onde estava, onde era a sua casa, pois todas tinham ardido, "Mãe...." chamou, mas foi somente o eco da sua voz naquele silêncio aterrador que ouviu.

"Vem cá minha filha..." Uma senhora de olhar meigo e que havia sido maltratada, pois tinha as marcas da violência a que fora submetida, agarrou nela e levou-a. Essa senhora chamava-se Susan: era também Kikuyo e candidatara-se a representante daquela zona de Nakuru junto das autoridades.

Nessa noite, Anne ficou com ela e Susan tratou dela, arranjou comida e água.

Susan soubera de uma mzungo ( branca) que com um conhecido seu havia recolhido crianças orfãs, dos bairros de lata dos arredores de Nairobi, crianças de várias tribos, todas iguais, sem diferenças. Era para lá que Susan levaria Anne: "E a minha mãe?", perguntou-lhe Anne. O olhar de Susan disse tudo e duas grossas lágrimas correram pelas faces da menina.

Anne chegou ao Centro há quase 4 anos: era muito tímida, não sorria: o seu olhar era o olhar mais triste que jamais houvera visto. Acolhi-a, como às outras crianças, como podia não acolhê-lha?

Demorou tempo para que o sorriso lhe voltasse à face: quase 4 anos.
Demorou tempo para que parasse de perguntar pela tia, pelo tio que haviam sobrevivido, mas que não queriam responsabilidades, nem sequer queriam vê-la.
Até que , um dia, Anne não fez mais perguntas.

Hoje Anne está perfeitamente integrada no Centro, estuda na escola particular, ajuda nas tarefas de casa, trata e protege os seus "irmãos " e "irmãs" do Centro e, dentro do possível, é uma menina feliz.

Há pouco, foi com a escola a uma visita de estudo a Nakuru. Chegou um pouco agitada e triste, disse-nos o professor.

domingo, 20 de novembro de 2011

Eu não me lembro...

É noite. Na região do Monte Quénia as noites são frias. O Cristiano é um menino de talvez uns 7 anos. Não se sabe ao certo. Não tem certidão  de nascimento. Pai? Mãe? É um menino de rua, como tantos outros, que vagueia invisível e que se desaparecer ninguém vai notar.
Nessa noite,  o Cristiano tem fome, está descalço, uns calções rotos e sujos e sem camisa.
Alguém teve pena dele.

O Cristiano chegou ao Centro Wanalea em 2008, no mês de Maio, numa noite não tão fria como as da região de Meru, no Monte Quénia. Estava um pouco assustado. Aquele ambiente era tão diferente do que estava acostumado. Havia outras crianças que sorriam e lhe davam as boas vindas. Uma senhora de olhar meigo e sorriso encantador deu-lhe um prato com feijão legumes estufados e chapati. O Cristiano arregalou os olhos ao ver o prato cheio: mal podia acreditar. Comida, sem ter de roubar, sem ter de fugir e que cheirava tão bem.

Nessa noite, grande parte do tempo a mesma senhora de olhar meigo e uma outra mais novinha tiraram-lhe das pernas, com jeitinho, as carraças que aí estavam há sabe-se lá quanto tempo. Doeu, mas aliviou!

O Cristiano nessa noite dormiu numa cama, com colchão  e até um lençol e cobertor.

Nos meses que se seguiram, o Cristiano frequentou  a escola no Centro com as outras crianças; fez amigos, comeu até se fartar e, a pouco e pouco, começou a rir, a brincar e foi esquecendo. Só algo ficou, como se estivesse gravado na sua memória, na sua carne: a fome! O Cristiano durante muito tempo, todas as noites levava nos bolsos do pijama e, pensava ele, às escondidas restos de comida, arroz, feijão, e dormia sossegado.

Ainda hoje, quando chega a hora da refeição e, por qualquer motivo, há um  atraso, o Cristiano fica cabisbaixo, não fala, não sorri, espera...

O Cristiano é um menino adorável: tem, agora, 10 anos, certidão de nascimento com data e tudo e já festejou este ano pela primeira vez o seu aniversário com uma bonita festa, os seus irmãos e irmãs do Centro e mais alguns amigos que convidou da escola particular que agora frequenta.

Tem uma mãe "mzungo", a mummy Laura, outra mãe-irmã também "mzungo" e a mesma senhora de olhar meigo que olha por ele com carinho e um senhor que está sempre no Centro, que toma conta de tudo com a mummy Laura e que sabe ralhar quando é preciso, que sabe castigar com amor.

O Cristiano é um menino normal, feliz, que dá gargalhadas encantadoras, que faz rir toda a gente, que é um estudante um pouco preguiçoso, mas com notas satisfatórias e que, por vezes, conta umas histórias que nem ele sabe bem donde lhe vêm, mas que provavelmente são memórias que agora fazem rir e com que goza,  mas que dantes magoava, e muito.

Hoje, pergunto-lhe: "Cristiano como era a tua vida antes de vires para o Centro?" Ele responde com um sorriso:"Não sei, não me lembro." E dá uma daquelas gargalhadas que tanto gosto  de ouvir e sai a correr com o seu modo desengonçado, descontraído.

Afinal, o Cristiano nasceu no dia em que chegou ao Wanalea Children´s Home!

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Onde está a minha mãe?

São 3 e meia da tarde. Mais um dia de escola que chegou ao fim. A Georgina tem 5 anos: entra no autocarro para ir para casa e percorre o caminho olhando pela janela, vendo o bulício de Ongata Rongai que tão bem conhece. Para ela, este é o seu mundo, ou melhor o Mundo.
O autocarro pára e a Georgina sai perto da sua casa onde , como de costume, a mãe a espera. O pai morreu não há muito tempo com Sida. Trabalhava no Ministério de Educação, não ganhava mal e a família vivia numa casa modesta, mas com algum conforto. A mãe estava desempregada há já algum tempo e a vida não corria da melhor maneira. Para a Georgina a morte do pai foi simplesmente uma ausência: ela não entendeu que era para sempre, por isso não ficou triste. Tinha a mãe! No entanto, nesse dia, quando chegou a casa a mãe não estava. A Georgina procurou-a na pequena casa onde habitavam, chamou-a, chamou-a e ficou sem resposta; apenas o silêncio. Sentou-se numa cadeira e colocou a pasta no sofá. Tinha fome, queria lanchar, mas a mãe não chegava e ela não sabia o que fazer. Passado algum tempo abriu a porta de casa, saiu para a rua e chamou pela mãe. Não houve resposta. Já assustada, foi percorrendo  a rua de terra batida chamando pela mãe até que uma senhora lhe pegou na mão  e disse: " Quem procuras menina? Onde está a tua mãe?" Georgina respondeu timidamente e com o queixo a tremer deixando correr uma lágrima pela face: "Não sei, não sei..." "Onde moras?", perguntou a senhora. A Georgina apontou com o dedinho para o fim da rua, no sentido da sua casa. "Vamos lá ver" disse a senhora sorrindo. A Georgina deu-lhe a mão e as duas foram pela rua abaixo até à casa da menina.
"Ah, já sei quem é a tua mãe" disse a senhora, "vi-a sair de manhã, mas não  a vi regressar. Vem comigo."
Assustada a menina foi com ela: tinha fome e não queria estar ali sozinha.
No dia seguinte a Georgina não foi à escola. Esperou em casa da senhora, foi inumeras vezes a casa, chamou pela mãe, mas esta não respondeu. Pelas 5 horas da tarde, a senhora resolveu levar a Georgina ao posto da polícia local e dar conta do desaparecimento da mãe da menina.

São 10 horas da manhã: a porta do Wanalea Children's Home abre-se e a Georgina entra pela mão do oficial do tribunal de menores. Esta será a sua nova casa: ali estão mais 26 crianças, todas com histórias ainda pior do que a Georgina: agora são uma família e é como família que a Georgina é recebida.

Duas semanas passaram e nem sinal da mãe da menina. O tribunal entrega a custódia da Georgina ao Wanalea Children's Home. Mesmo que a mãe apareça, o abandono da filha, que a lei severa do Quénia pune com 14 anos de prisão, é motivo suficiente para que a menina não volte a viver com a mãe. Talvez um parente: a investigação prossegue, mas a Georgina encontrou uma família e já ri novamente, voltou à escola, brinca e saltita alegremente com a que já é a sua melhor amiga, a Hilda que também tem 5 anos e é orfã.

É dia de ir ao médico fazer os exames exigidos no Wanalea Children´s Home. A Georgina é seropositiva, como a Irene que também faz parte desta família. Será tratada e com a boa alimentação e cuidados, tal como a Irene, superará a fragilidade que a doença lhe provoca.

A Georgina apresenta um estrabismo no olho direito, assim é levada ao oftalmologista. Os óculos já estão encomendados e chegam para a semana. O médico refere que com 5 anos, esta forma de estrabismo que poderia levar a menina à cegueira, pode ser tratada com sucesso. A Georgina não perderá a visão e o estrabismo desaparecerá em 2 anos.

Hoje, passado um mês, a Georgina está feliz. A mãe parece ter sido vista nas redondezas, não se sabe ao certo, mas não reclamou a filha: dizem que foi depressão pela morte do marido; dizem que fugiu com outro homem; dizem que sendo a filha seropositiva não queria cuidar dela, não se sabe o que leva uma mãe a abandonar uma menina como a Georgina. Talvez temesse não ter como  a alimentar, quem sabe...

Hoje a Georgina pegou-me na mão, olhou para mim, sorriu, e disse: "mummy Laura I love you!"

domingo, 16 de outubro de 2011

Humberto Coelho junta-se à ADDHU contra a fome no Corno de África


Asante sana Humberto!

Centro Wanalea acolhe mais uma menina abandonada

Na quarta-feira passada, dia 12 de Outubro de 2011, a ADDHU acolheu mais uma menina no seu Centro de Acolhimento Wanalea em Nairobi, Quénia. A menina tem 5 anos e chama-se Georgina Kabasa. As autoridades estão a tentar localizar familiares da menina, sem sucesso até agora. É pouco provável que, nestas circunstâncias, a menina regresse à sua família.

Entre os mais de 50 orfanatos que existem no distrito de Kajiado, onde se situa o Centro Wanalea, as autoridades quenianas escolheram o centro da ADDHU por considerarem ser o único local que oferece às crianças um verdadeiro ambiente de família.

Infelizmente, depois de levarmos a Georgina ao hospital para realizar exames médicos, descobrimos que a menina é seropositiva. Felizmente, ao nosso cuidado, terá acesso aos cuidados médicos que necessita para crescer com saudável e ter uma vida normal.

A Georgina ainda está a adaptar-se à sua nova casa e família, mas um sorriso já começa a esboçar-se nos seus lábios. Bem-vinda à nossa família Georgina: que encontres aqui o amor e carinho que mereces e que todos os teus sonhos se tornem realidade!

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Viver num bairro de lata do Quénia em tempos de crise alimentar...

No bairro de lata de Mukuru em Nairobi vivem cerca de 200.000 pessoas. A alarmante subida de preços torna impossível para estas gentes o acesso aos alimentos básicos.
O mesmo acontece no bairro de lata de Soweto, Kayole, com 400,000 pessoas ou o de Kitui Ndogo, Majengo. Neste dois últimos a ADDHU tem realizado distribuição de alimentos de forma regular. Até quando? Só a boa vontade e a solidariedade de todos nós o dirá.




Como tem sido largamente noticiado a pior crise humanitária de sempre tem vindo a devastar a região do Corno de África: na semana passada o preço dos cereais atingiu novamente preços recorde no Quénia, na Etiópia e na Somália. Ainda para mais, começa a haver escassez no abastecimento de cereais e outros bens básicos. A pior seca dos últimos 60 anos em combinação com os alarmantes aumentos nos bens alimentares básicos e nos combustíveis criaram um “triângulo da fome” que deixou mais de 12 milhões de pessoas sem meios para se puderem alimentar.




No Quénia, 3,5 milhões de pessoas enfrenta uma situação de fome extrema. De acordo com dados recentes, 385.000 crianças e 90.000 mulheres grávidas e a amamentarem sofrem de má nutrição. Estas gentes que vivem em bairros de lata estão a sentir de forma bem dura os efeitos da seca. Em Nairobi estima-se que dois terços da população vive em bairros de lata.
Estas famílias têm de pagar alojamento, o uso diário de latrinas, água, querosene para cozinhar e para as lamparinas, transportes, propinas escolares (mesmo as públicas) e os cuidados de saúde (mesmo em hospitais públicos).




Por causa da seca, os preços subiram 200% e há escassez de alimentos como a farinha de um milho próprio com que fazem o ugali, base da alimentação de quase todos os quenianos.
Como é que sobrevivem? As histórias são muitas e repetem-se assustadoramente: prostituição de uma jovem mãe que recorre a esta prática para alimentar a sua filha e que passado pouco tempo, já são dois filhos e depois três, enfim, um circulo sem fim; outros dedicam-se à venda de drogas e roubo. É comum ver-se nos bairros de lata crianças que chupam pedrinhas para enganar a fome ou outras que cheiram cola para se sentirem dormentes. Muitas das raparigas que se dedicam à prostituição chegam de manhã a casa da vizinha que ficou a tomar conta dos filhos trazendo 50 shillings (cerca de 40 cêntimos), por vezes nem isso pois não foram pagas ou foram espancadas. Por vezes, trazem um pouco mais de dinheiro. Mas como continuar a sobreviver se devido à seca 1 quilo de farinha com que alimentavam os filhos por 2 dias, e que custava 50 shillings, custa agora 200? E os 8 euros que têm de pagar para viverem num buraco infecto sem qualquer tipo de condições mínimas nem para um animal, quanto mais para um ser humano? A lista é longa e conheço de perto esta realidade.




Tento, tudo faço para ajudar, não todos seria impossível, mas o maior numero possível e tenho de pedir a Deus que me dê forças para ficar feliz com os que ajudei e não chorar pelos que tive de deixar de fora. Mas confesso: é díficil, muito difícil.




E lidar com a indiferença dos meus amigos, família, com as empresas que se cobrem com o chapéu da crise para dizer NÃO. Ou outras que nem abrem o e-mail?
Tenho de agradecer a todos os que me ajudam, cuja a grande maioria nem sequer conheço, mas que respeitam o meu trabalho e o dos meus parcos colaboradores e que acima de tudo, por pouco que tenham, partilham com aqueles que nada têm.
Um grande bem hajam para estas almas grandes, para os padrinhos e madrinhas dos meus meninos, para os que têm oferecido sacas de feijão, arroz, farinha e assim ajudar-me a aliviar a fome daquelas gentes, para aqueles que telefonam para o nosso numero solidário e divulgam e pedem juntamente comigo. Não gosto de pedir: magoa-me quando me dizem que não, quando voltam a cara. Mas tenho de ser humilde e tenho de continuar a pedir, quase a implorar tendo sempre na minha mente aqueles olhinhos de aflição, mas também de gratidão: “Afinal, dizem, estes não tiraram só fotografias, estes voltaram e deram-nos comida.”




Para terminar deixem-me que vos conte uma história que uma das voluntárias que esteve no meu Centro me enviou e que me confortou:
‎"Um executivo em visita a uma cidade turística saiu do hotel em que estava hospedado certa manhã para caminhar. Quando chegou à beira da praia, deparou com uma visão atordoante: inúmeras estrelas-do-mar haviam sido lançadas na praia durante a noite pela maré alta. Ainda estavam vivas e se moviam, subindo umas em cima das outras na tentativa de voltar para o oceano. Aquele homem tinha consciência de que não demoraria muito até que o sol cozinhasse aquelas pobres criaturas. Ele queria fazer alguma coisa, mas havia milhares delas, até onde se os olhos podiam ver e, qualquer tentativa de salvar todas elas seria inútil.
Assim, seguiu em frente. Caminhando um pouco mais pela praia, viu um menino que se abaixou, pegou uma estrela-do-mar e jogou-a como um frisbee de volta ao oceano. O menino repetiu o processo várias e várias vezes, aumentando cada vez mais a velocidade, numa óbvia tentativa de salvar o máximo possível delas.
Percebendo a intenção do menino, o executivo sentiu-se na obrigação de ajudá-lo e também ensinar-lhe uma dura lição de vida. Foi até o pequeno e disse:
- Filho, deixe-me dizer-lhe uma coisa. O que você está fazendo aqui é nobre, mas não é possível salvar todas essas estrelas-do-mar. Existem milhares delas. Está começando a ficar muito quente, e todas elas vão morrer. É melhor você seguir seu caminho e brincar. Não dá para faze nenhuma diferença aqui.
O menino não disse nada num primeiro momento; ficou simplesmente olhando para o executivo. Então, abaixou-se, pegou outra estrela-do-mar, jogou-a no oceano o mais longe que pôde e disse:
- Bom, eu fiz toda diferença para essa aqui."
Obrigada Marta!






segunda-feira, 29 de agosto de 2011

ONU reconhece grave problema de fome nos bairros de lata de Nairobi




O Quénia está a atravessar uma das maiores secas dos últimos 60 anos. Segundo a ONU, trata-se de uma crise humanitária sem precedentes, que está neste momento a afectar mais de 10 milhões de pessoas, não só no Quénia mas também na Etiópia, no Uganda, e sobretudo na Somália onde já foi declarado o estado de fome em 2 regiões do pais.
O Quénia tem recebido uma média de 1000 refugiados por dia que vêm da Somália e do Sudão, fugindo da fome, e que vão engrossar os já superlotados bairros de lata de periferia de Nairobi.



Os preços dos bens alimentares no Quénia tem vindo a aumentar drasticamente desde o início do ano de 2011. A farinha usada para cozinhar o “ugali”, o alimento mais consumido no Quénia, sofreu aumentos na ordem dos 50%, sendo que um pacote de 2kg que custava 100 Kenya Shillings (cerca de 1 Euro) em Dezembro de 2010, custa agora 150 Kenya Shillings. Para além disso, começam também a escassear alguns bens alimentares como cereais.
Apesar da seca ter atingido sobretudo o Norte do país, esta crise também tem tido sérias consequências nas populações dos bairros de lata de Nairobi, e por isso a ADDHU vai procurar estender o seu raio de acções a mais crianças, numa tentativa de responder a esta crise alimentar sem precedentes e de responder aos inúmeros pedidos de ajuda que temos vindo a receber.
A agência noticiosa da ONU chamou à atenção para a pouca assistência dada às populações dos bairros de lata de Nairobi, onde a fome é já um grave problema. Os meios de comunicação e as grandes agências de ajuda humanitária têm-se concentrado nos campos de refugiados da Somália, mas não podemos esquecer que estas pessoas estão igualmente afectadas pela crise alimentar no Corno de África.



Podem consultar a notícia e o apelo lançado pela ONU cliquando aqui.



E é aqui que a ADDHU concentra o seu trabalho e faz realmente a diferença, onde mais ninguém está... Como sabem, a ADDHU desenvolve trabalho no Quénia, nomeadamente nos bairros de lata de Kitui Ndogo - Majengo (100,000 habitantes) e do Soweto (400,000 habitantes). De modo a responder a esta crise, estamos neste momento no terreno a desenvolver várias iniciativas nestes dois bairros de lata de Nairobi, que têm não só vindo a receber cada vez mais refugiados da Somália, uma vez que os campos do Norte se encontram sobrelotados, mas cujas populações têm vindo a ser gravemente afectadas pela crise alimentar e humanitária do Corno de África. Entre as iniciativas organizadas e levadas a cabo, importa salientar as distribuições regulares de bens alimentares às famílias mais afectadas. No dia 15 de Agosto, distribuímos cerca de uma tonelada de arroz, feijão e farinha de trigo no bairro de lata do Soweto, e no dia 23 de Agosto, voltámos a distribuir mais uma tonelada de alimentos no bairro de lata de Kitui Ndogo - Majengo. Para além disso, estamos igualemente a desenvolver um programa alimentar escolar no bairro de lata do Soweto em Nairobi, que neste momento abrange 690 crianças e que gostaríamos de alargar a mais crianças.



Mais do que nunca, o vosso apoio é neste momento crucial pois sem ele as nossas crianças iriam ser severamente afectadas por esta crise. Mais do que nunca, a vossa solidariedade e vosso carinho estão neste momento a fazer TODA a diferença! Mais do que nunca, contamos convosco para juntos enfrentarmos este momento difícil que todos nós atravessamos!

E, mais do que nunca, queríamos agradecer-vos pelo vosso esforço e pelo vosso apoio incondicional! Obrigada por acreditarem que é possível fazer a diferença!







Linha solidária ADDHU
760 300 130 (0,60 Euros + IVA)
Por cada chamada, será distribuída uma refeição a uma criança do bairro de lata do Soweto através do nosso programa alimentar escolar.

Dados bancários da ADDHU para donativos
Banco: Millenium BCP 

NIB: 0033 0000 45392959245 05

IBAN: PT50 0033 0000 45392959245 05 

BIC/SWIFT: BCOMPTPL



domingo, 17 de julho de 2011

Dádiva do Mês - Vitaminas para Criança (30 Euros)

Com estas vitaminas, podemos ajudar as crianças do Centro Wanalea e dos bairros de lata de Nairobi a crescerem com saúde!
Num momento em que o Quénia atravessa uma grave crise alimentar, estas vitaminas vão ser essenciais para que as crianças possam enfrentar esta crise com saúde! Participem! Também podem doar embalagens de vitaminas à ADDHU que nos trataremos de fazê-las chegar ao Quénia através dos nossos técnicos e voluntários no terreno!
Façam já a vossa Dádiva através do seguinte email: info@addhu.org. Contamos convosco!



Crise humanitária no Quénia

O Quénia está a atravessar uma das maiores secas dos últimos 60 anos. Segundo a ONU, trata-se de uma crise humanitária sem precedentes, que está neste momento a afectar mais de 10 milhões de pessoas, não só no Quénia mas também na Etiópia, na Somália e no Uganda.

Os preços dos bens alimentares no Quénia tem vindo a aumentar drasticamente desde o início do ano de 2011. A farinha usada para cozinhar o “ugali”, o alimento mais consumido no Quénia, sofreu aumentos na ordem dos 50%, sendo que um pacote de 2kg que custava 100 Kenya Shillings (cerca de 1 Euro) em Dezembro de 2010, custa agora 150 Kenya Shillings. Para além disso, começam também a escassear alguns bens alimentares como cereais.

Mais do que nunca, o vosso apoio é neste momento crucial pois sem ele as nossas crianças iriam ser severamente afectadas por esta crise. Mais do que nunca, a vossa solidariedade e vosso carinho estão neste momento a fazer TODA a diferença! Mais do que nunca, contamos convosco para juntos enfrentarmos este momento difícil que todos nós atravessamos!

E, mais do que nunca, queríamos agradecer-vos pelo vosso esforço e pelo vosso apoio incondicional! Obrigada por acreditarem que é possível fazer a diferença!

Asante sana...



quarta-feira, 29 de junho de 2011

ADDHU leva a língua e cultura portuguesas aos bairros de lata do Quénia



Espalhamos a língua e a cultura portuguesas em África, sem ser nos PALOP, sem ajuda nem do governo português, nem de outras instituições... Somente com os donativos gerais que recebemos das pessoas e de outras pequenas organizações que apoiam o nosso trabalho. É com enorme satisfação que iniciamos este programa não só porque nos orgulhamos de dar a conhecer o nosso país, mas também porque levamos o conhecimento e melhores oportunidades na vida a jovens de meios desfavorecidos. A língua portuguesa é falada em 5 países de África e no Brasil. É uma mais valia! 

terça-feira, 28 de junho de 2011

África...


África! A Natureza foi generosa nos atributos que lhe deu. Como, pergunto-me, pode haver tanto sofrimento num local que nos presenteia com tão magnífica visão?

Mas assim é e eu que o diga. O sofrimento daqueles meninos de olhar triste e por vezes vago que vejo nos bairros de lata na periferia de Nairobi é também, agora, o meu e nada posso contra o que sinto.

Luto a cada dia, peço, quase que imploro muitas vezes calada somente pelo meu silêncio que sufoca o grito que me apetece dar: “ Não vêem? Não entendem? Venham que eu mostro-vos…”

Cheguei já cheia de pó e a cara mascarrada do fumo dos matatus. Como sempre, fui acolhida com entusiasmo e alegria, mesmo no meio de tanta coisa feia e mal cheirosa: os telhados de zinco retorcidos que se opunham à minha passagem incólume davam lugar aos sorrisinhos e àquelas vozinhas que me diziam sempre “how are you”, olhares tristes, mas cheios de esperança e curiosidade: “trará bolachas e leite e talvez um pouco de porridge? Hum yummi!”

Sim trago tudo isso e alguma farinha para chapatis de que tanto gostam.´Por momentos é a algazarra e esquecem-se as dores, esquece-se a fome com a perspectiva de uma refeição, de uma bolacha, de um litro de leite que tão pequenos sorvem em menos de um minuto, com os olhinhos muito abertos.

Aconteceu-me, uma vez, e jamais esqueci: esbarrei com um pequenote, não tinha mais de 3 anos, de camisa de pijama suja e esfarrapada, uns calções sem cor definida de pó e porcaria que traziam agarrados e de pezinhos nús. Estave ele sentado no chão, com uma das mãos na cabeça, como se estive absorto pelos mais filosóficos pensamentos. Quando sentiu a minha presença e sem tirar a mão da cabeça, olhou-.me, de  modo profundo, mas o seu olhar estava tão vazio, sem desespero, sem dor, sem nada, que me arrepiou. Nenhuma criança devia ter um olhar daqueles, tão pesado, tão velho, ausente de sentimento.

Alegro-me por percorrer os caminhos que percorro: alegro-me por conhecer, por esses caminhos, as pessoas que conheço: alegro-me porque posso sentir alegria no meio do sofrimento, porque posso sentir a gratidão daquelas gentes, daquelas crianças e sorrio porque verdadeiramente e mesmo chorando, sou abençoada!





terça-feira, 3 de maio de 2011

A SOLIDARIEDADE EM DESTAQUE

Como medir a pobreza? A fome? O nada ter? Afinal o que é isso de “nada ter”? Para nós, muitas vezes, põe-se o problema entre o Ser e o Ter em que ganha quase sempre, neste mundo em que vivemos, o Ter porque este se confunde profundamente com o Ser. Eu sou aquilo que tenho! E em que termos medimos o que temos e assim o que somos? Vamos comparar com o quê? Com o que sentimos que queremos ou devemos Ter? Quem poderá medir tal coisa?

Mas para muitos, diria mesmo grande parte da população mundial, estas questões nem se põem pois trata-se de uma outra questão mais básica, mais premente, mais urgente: a sobrevivência: onde me posso abrigar? Terei algo para comer, limitar-me-ei a chupar pedrinhas para salivar e assim enganar a fome? Estarei segura? O triste é que isto acontece na maioria das vezes com crianças as quais, a braços com esta questão básica e instintiva da sobrevivência, nem sabem que podem sonhar, que existe algo que se chama futuro e que se, ah, se as coisas fossem um pouquinho diferentes, até podiam…até podiam Ser, pois para elas não existiria o Ter acima de tudo, mas sim o Ser! Digo-o e afirmo-o com conhecimento de causa. Sei do que falo. A minha experiência com as crianças do Centro Wanalea no Quénia revelou-me algo que, afinal, devia servir de exemplo a muitos de nós, inclusive eu, isto é o que poderei Ser e não o que poderei Ter.

Aqui voltamos ao início da questão: para que estas crianças possam Ser, alguém deve Ter para que elas construam o seu sonho, realizem o seu futuro. Deste modo, ponhamos a solidariedade em destaque e abandonemos um pouco o nosso Ter para que estas crianças e outras como elas possam Ser.

É em momentos difíceis, como o que sem dúvida passamos, em que vemos o nosso Ter tão ameaçado quase que confundido com sobrevivência, com o essencial, que devemos Solidariedade àqueles que, esses sim, nada têm, nem mesmo o sonho de Ser.

E, acima de tudo sejamos altruístas e não abandonemos aqueles que não podem ser abandonados, e contrariemos assim esta tendência do individualismo puro e egoísta que nos colocou nesta alhada de mundo em que vivemos.

Agradeço profundamente a todos os padrinhos e madrinhas das crianças do Centro Wanalea no Quénia e a todos aqueles que me apoiam com as suas Dádivas de Esperança, sejam elas em que forma forem, tantas vezes uma palavra de apreço e incentivo, pois colocam o Ser destas crianças acima do vosso Ter.
Bem hajam.


Laura Vasconcellos

segunda-feira, 21 de março de 2011

Dia Mundial Contra a Discriminação Racial

A questão da discriminação racial prende-se com a questão do entendimento do Outro, daquele que é diferente de nós, não por deficiência, sexo ou nível sócio-economico, mas sim por Raça. E o que é isto da Raça? Cor? Cultura? Situação geográfica? Talvez tenha a ver com a questão da Origem. Ora se a Origem pode ser considerada factor de discriminação racial, de diferença, também o é, por certo, factor de união. Afinal, independentemente da nossa cor, sexo, cultura, do local onde nascemos, todos somos provenientes da mesma Origem, como diria Darwin, Homo Sapiens. Então, porquê as questões raciais, desse tipo de diferença, têm causado tanto sofrimento, exclusão, maus tratos, violência e até aproveitamento sócio político e social?
Será que a criança de apenas, digamos, dois anos, empurraria uma outra da mesma idade mas por exemplo, africana ou asiática, somente por essa mesma razão? Será que essa outra criança africana, sem qualquer tipo de antecedente traumático relativamente à sua “raça” voltaria a cara a uma criança dita caucasiana? Penso que não e por experiência até posso afirmar que não. Não nos esqueçamos que mesmo entre indivíduos da mesma “raça” existem questões de outro tipo de discriminação, agora não pela cor, mas pela cultura e origem dentro dessa mesma “cor”. Refiro-me como é evidente, pois é o meu campo de trabalho onde tenho mais experiência, aos africanos cujo sistema tribal os afasta, por nuances culturais diferentes, porque eu faço as coisas desta maneira e tu de outra, porque os meus rituais são estes e não são os teus, mas afinal que há assim de tão diferente entre os indivíduos? Para não falar no passado em que a certa altura se considerou que o africano não tinha alma e por isso não era um ser humano, o que para muitos, diria mesmo a maioria, serviu de desculpa para se implementar um sistema de comercio, o comercio de escravos, gostava de me voltar para o presente em que uma sociedade dita evoluída que fala de direitos humanos e que todos somos iguais, continua a discriminar, por vezes de forma velada, o Outro, o diferente na cor, na cultura, na origem. Porque não conhece? Sim! Mas também porque muitas vezes nem se dá ao trabalho de conhecer.
Apenas alguns exemplos:
As crianças soldados na Birmânia: comentei esta questão com alguém referindo ao tratamento a que são sujeitas quando não querem pegar numa arma e matar, tratamento esse que inclui espancamentos e cortes nas pernas. Ouvi o seguinte:” Mas afinal porque te preocupas, eles sempre estiveram habituados a essas coisas…” E eu pergunto-me será o sangue de uma criança birmanesa é diferente de uma portuguesa, francesa, espanhola ou inglesa?
Quando cheguei ao Quénia em Outubro de 2007 em missão de reconhecimento do terreno, confrontei-me com algo que julgava não existir, dado este país ser um destino turístico muito conhecido: em Kissi, uma região algo remota, foi acolhida em ambiente de festa pois pela primeira vez poderiam tocar num branco. Tanto a minha pela como a cor do meu cabelo, louro, foram muito apreciados e considerados belos, macios, o que deu uma enorme satisfação àquelas gentes.
As crianças que residem no Wanalea Children’s Home quando chegaram foi com desconfiança que para mim olharam, pois para eles branco é o Outro que subjuga, que nem sempre é bom, que ignora. Depois de estarem mais à vontade, vendo que eu não era “desses” a minha pele e o meu cabelo foram tocados, mexidos e remexidos e as gargalhadas e o contentamento foi enorme. Hoje, estou convicta que quando para mim olham nem “vêem” a cor da minha pele, mas simplesmente a “mummy” que por eles trabalha, que deles cuida.
Entre as 26 crianças que estão no Centro, existem 5 tribos diferentes: Luho, Kikuyo, Massai, Meru e Kissii. Todas elas sabem a que tribo pertencem, todas elas ainda não esqueceram o dialecto que falavam antes de aprender o swahili e o inglês, todas elas se orgulham das suas raízes. Mas também todas elas sabem que fazem parte de um país que se chama Quénia e que todas elas são quenianas. Se estas crianças podem ultrapassar barreiras raciais e tribais e ter abertura para o conhecimento do Outro, porque é que a nós ditos “civilizados” nos é tão difícil fazê-lo?
Deixo esta reflexão para o dia 21 de Março, pois é preciso ainda muita coisa mudar. A tolerância tem de ir mais longe e há que ter uma maior vontade de conhecer esse “Outro” que em ultima análise é o outro lado de nós mesmos.


Laura Vasconcellos

quinta-feira, 3 de março de 2011

A BIRMÂNIA CONTINUA ESMAGADA POR UMA DITADURA QUE PERSISTE IMPUNE…

«I would like the West to see us not as a country rather far away whose sufferings do not matter, but as fellow human beings in need of human rights and who could do so much for the world, if we were allowed.»
Daw Aung San Suu Kyi

Não é fácil falar de uma situação de grave e constante violação dos mais básicos direitos humanos quando esta diz respeito a um país que se encontra tão distante de nós. Submersos que estamos em imagens, notícias e relatos de tantos casos em que, levianamente, se esquecem esses mesmos direitos que todo o indivíduo possui, pelo menos teoricamente, como nos é possível olhar para mais um caso, para um país do sudeste asiático, tão longínquo como desconhecido, que se chamou Birmânia em outros tempos e que lhe viu imposta, sob uma ditadura, a designação de Myanmar?

Embora a libertação de Aung San Suu Kyi e das eleições fantoche de Novembro de 2010, nada mudou: são os mesmos, de militares passaram a civis, mas assistimos a um embuste e nada mais. Junta militar que força crianças, de apenas 10 e 11 anos, a ingressarem no exército, debaixo de maus tratos e ameaças, a pegar numa arma e a matar.

Conhecemos as violações de mulheres de minorias étnicas e os campos de trabalho onde a tortura é a lei, fruto da desumana política de desalojamento das aldeias, cujos camponeses, empobrecidos pelas condições miseráveis que são a realidade do país, se vêem obrigados a abandonar, tal como os seus campos de cultivo. Esses aldeões, famílias inteiras, são obrigados a completar em poucos dias uma longa marcha até um local desconhecido, sem condições, em geral próximo de um aquartelamento, onde são forçados a ficar e a trabalhar, a troco de nada, para os militares. Na última década, 3000 aldeias foram destruídas ou os seus habitantes realojados na região Este da Birmânia. Durante os sistemáticos ataques militares, as mulheres são violadas, as crianças forçadas a pegar em armas e os abastecimentos de arroz são queimados.
Nem após o ciclone Nargis que há cerca de dois anos abalou a Birmânia, estes militares se mostraram um pouco humano. Na zona mais afectada, o delta do Irrawady, milhares de pessoas ficaram sem nada. A ajuda humanitária foi impedida de entrar no país. Aviões do World Food Program sobrevoaram a zona lançando sacos de arroz: os militares recolheram-nos e, em vez de distribuir pela população, vendeu-os.
Fugindo da crueldade deste regime, deixando as suas aldeias e casas para trás, as populações temendo pelas suas vidas debandam pelas florestas, muitas vezes por terras inóspitas acabando por encontrar a Junta Militar à sua espera. Na Birmânia há cerca de um milhão e meio dos chamados desalojados internos, os IDP.
Este ciclo de terror parece não ter fim. O campo de refugiados situado na fronteira com a Tailândia em Mae Sot está a transbordar de gente sem nada, abandonadas pelo mundo. Aí, o tráfico de crianças impera.
A lista das violações dos direitos humanos na Birmânia é por demais extensa e variada. E perguntamo-nos: Como é possível que, em pleno século XXI, uma situação destas persista há tanto tempo?
A situação dos direitos humanos na Birmânia tem vindo a deteriorar-se cada vez mais. A situação é grave, nem havendo qualquer respeito pela crença religiosa do país, em que mais de 80% da população é budista. A Junta Militar e o seu líder, o general Than Shew, ignorando uma pacífica demonstração de descontentamento encabeçada precisamente por monges budistas, não hesitou em atirar sobre eles e sobre os civis que entretanto se lhes juntaram, e ordenou rusgas aos mosteiros que, em pouco tempo se encontraram vazios e sem cor, pois os monges de vestes cor de açafrão haviam desaparecido, encarcerados, torturados e muitos, pensa-se, queimados vivos em fornos crematórios nos arredores de Rangum.
O espírito dos estudantes da revolta de 8 de Agosto de 1988 ergueu-se, uma vez mais, agora com outra cor e outras vozes: o açafrão, as preces e os mantras budistas ouviam-se agora nas vozes da grande massa dos manifestantes.
Desta vez, nem a tradição religiosa teve poder para parar a corrupção, a ganância e a falta de qualquer tipo de respeito por parte destes generais. Eles, que usam, cada vez mais, o sistema de justiça como ferramenta para amordaçar a dissidência. Eles que, vendo-se apoiados pelas super potências vizinhas, continuam a desrespeitar os direitos humanos, ignorando os inúmeros apelos que vêm sendo feitos, desde há já algum tempo.
A Junta Militar continua impune e escarnece de toda a comunidade internacional. Todos nós sabemos o que se passou na Praça de Tiennanmen em 1989. Mas saberão que a 8 de Agosto de 1988, em Rangum, uma manifestação pacífica de estudantes foi massacrada pelos militares, provocando tantas mortes como as de Tiennanmen?
Há mais de dez anos que venho seguindo a situação na Birmânia, precisamente desde que por lá andei em 1997.
É com apreensão que vejo o destino desta gente que me é tão cara: mesmo sem os generais, não nos podemos esquecer que cerca de 48% da população da Birmânia é constituída por minorias étnicas, cujas principais e mais numerosas – karen, shan, karenni e outras – possuem os seus pequenos exércitos. Como irão estas estabelecer um entendimento, se um dia a Junta sair efectivamente do poder? Aung San Suu Kyy, poderá ser o elo de união desse povo, a razão da procura da estabilidade tão ansiada?
Aqui reside a minha preocupação: estas gentes estão cansadas de sofrer… Já o estavam quando com eles estive e deles ouvi, mesmo entre murmúrios, a voz do seu desespero
O belíssimo país dos mil stupas, de gente encantadora, que deu ao mundo uma mulher cuja coragem, abnegação, espírito de sacrifício e amor pelo seu povo, faz-nos acreditar que vale a pena lutar e continuar a acreditar que um dia todos nós seremos livres, porque, a meu ver, nenhum de nós é verdadeiramente livre enquanto pessoas como Aung San Suu Kyi permanecerem encarceradas.
Que Daw Suu permaneça em Liberdade e que essa Liberdade seja uma liberdade de facto
A esperança persiste no espírito daqueles que crêem na liberdade, na justiça e na democracia e mesmo aqui, em Portugal, tão longe da Birmânia, que haja um sentimento de solidariedade por aqueles que, sendo diferentes, sofrem no corpo e no espírito, como qualquer outro ser humano, a violação dos seus direitos mais básicos.