"A pobreza é a pior forma de violência" (M. Gandhi)

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"A pobreza é a pior forma de violência" (M. Gandhi)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

E de repente eles vieram...

Pouco depois de terem saído os resultados das eleições, em finais de 2007, no Quénia, estalou uma onda de violência pós eleitoral que acendeu o ódio entre as várias tribos, especialmente contra o povo Kikuyo.

Anne tinha 10 anos. Vivia num bairro de lata, em Nakuru, zona conhecida pelo magnífico lago que tem o mesmo nome e célebre pela enorme mancha cor-de-rosa das centenas de flamingos que vivem nas suas margens.

Anne vivia com a mãe e dois irmãos. O pai tinha abandonado  a família que lutava árduamente para sobreviver. Não ia à escola; o dinheiro mal chegava para comer uma refeição por dia: arroz, feijão, ugali e pouco mais. Eram 8 da manhã, num dia que se adivinhava de grande calor, nesse mês de Dezembro de 2007.O sol aquecia já bastante e Anne tinha sido mandada buscar água ao fundo da rua limitada por casebres feitos de lama e chapa onde uma senhora, já com alguma idade, vendia água que saía de uma torneira ligada a um furo pertencente a sabe-se lá quem, que cobrava à tal senhora e esta aos moradores do bairro de lata. A água é um bom negócio nos bairros de lata.
Anne sabia a importância da sua tarefa: era preciso ferver água para beber e para fazer chá. O açucar era caro e, por vezes, não havia dinheiro para comprar; mas o chá, esse não faltava nunca.

Chegou a casa, acendeu o fogareiro a carvão e pôs um pouco de água a ferver: "Mãe, já trouxe a água".
A mãe de Anne teria uns 37 anos, era portadora do vírus da SIDA. Todos dormiam no chão, enrolados em cobertores rotos e sujos, mas estavam juntos e esse calorzinho trazia-lhe, quando fechava os olhos, uma sensação de quase segurança.

Anne sabia que havia perseguições ao povo Kikuyo depois das eleições que se diziam de resultados forjados: Kibaki era Kikuyo ; Kibaki não queria deixar o cargo de presidente.

Nessa manhã, perto do meio dia, Anne tinha novamente saído para tentar arranjar alguns vegetais, sukuma e tomate, para cozinharem com o ugali.

De repente eles vieram.... eram muitos, na sua larga maioria homens e jovens também: traziam machetes nas mãos e gritavam cheios de raiva. Pegavam fogo aos casebres por onde passavam fazendo sair os que aí se encontravam: velhos, mulheres crianças...e as machetes desferiam golpes mortais, as roupas das mulheres rasgadas e ali mesmo, no meio da confusão e da gritaria, eram violadas e espancadas.

Anne deixou cair o saco que trazia na mão e ficou parada, sem saber o que fazer....queria correr para a sua casa, saber da sua mãe, dos seus irmãos que aí  a esperavam, pois do sítio onde esta se encontrava elevavam-se enormes colunas de fumo e labaredas.

Anne olhou para tudo aquilo  e chorou. Mas o instinto fê-la correr e fugir, esconder-se tentar escapar a toda aquela violência. As lágrimas corriam-lhe pelas faces, os pés descalços feridos pelas pedras que, com o medo a dar-lhe força, nem via que pisava.

Escondeu-se por detrás da parede de uma casa de lama vazia, cujo telhado de colmo já havia ardido. Sentou-se, encolheu-se o mais que pôde, fez-se pequenina. Não queria ouvir mais gritos: tapou os ouvidos com as mãos e chorou, chorou muito....

Era já escuro quando se levantou e decidiu, timidamente e a medo, ver o que se havia passado. Não entendia.Porquê?  Foi andando em direção à sua casa: a rua era um amontoado de escombros: as casas tinham ardido, alguns corpos jaziam no chão sem vida; havia sangue também.
Anne andava aos tropeções e de novo chorava. Já não sabia onde estava, onde era a sua casa, pois todas tinham ardido, "Mãe...." chamou, mas foi somente o eco da sua voz naquele silêncio aterrador que ouviu.

"Vem cá minha filha..." Uma senhora de olhar meigo e que havia sido maltratada, pois tinha as marcas da violência a que fora submetida, agarrou nela e levou-a. Essa senhora chamava-se Susan: era também Kikuyo e candidatara-se a representante daquela zona de Nakuru junto das autoridades.

Nessa noite, Anne ficou com ela e Susan tratou dela, arranjou comida e água.

Susan soubera de uma mzungo ( branca) que com um conhecido seu havia recolhido crianças orfãs, dos bairros de lata dos arredores de Nairobi, crianças de várias tribos, todas iguais, sem diferenças. Era para lá que Susan levaria Anne: "E a minha mãe?", perguntou-lhe Anne. O olhar de Susan disse tudo e duas grossas lágrimas correram pelas faces da menina.

Anne chegou ao Centro há quase 4 anos: era muito tímida, não sorria: o seu olhar era o olhar mais triste que jamais houvera visto. Acolhi-a, como às outras crianças, como podia não acolhê-lha?

Demorou tempo para que o sorriso lhe voltasse à face: quase 4 anos.
Demorou tempo para que parasse de perguntar pela tia, pelo tio que haviam sobrevivido, mas que não queriam responsabilidades, nem sequer queriam vê-la.
Até que , um dia, Anne não fez mais perguntas.

Hoje Anne está perfeitamente integrada no Centro, estuda na escola particular, ajuda nas tarefas de casa, trata e protege os seus "irmãos " e "irmãs" do Centro e, dentro do possível, é uma menina feliz.

Há pouco, foi com a escola a uma visita de estudo a Nakuru. Chegou um pouco agitada e triste, disse-nos o professor.

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